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O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930, de Lilia Moritz Schwarcz

18 de Março, 2025 . Resenhas José Eustáquio Romão, Fernando Vinicius Gonçalves Frias

Primeiramente cabe indagar por que formular uma resenha de uma obra cuja primeira edição é de 1993 e que já está na 15a. reimpressão. É que, hoje, o difuso racismo nacional é cada vez mais denunciado e sua discussão perpassa todos os segmentos da sociedade brasileira. O tema vem ganhando, inclusive, prestígio acadêmico e emerge como temática nos nichos produtores de conhecimento, cobrando estudos mais profundos, que vão ao cerne de sua gênese e evolução histórico-social. Nesse aspecto, o livro de Schwarcz, responde perfeitamente a essa demanda porque ela trata dos fundamentos das origens desse racismo difuso na sociedade brasileira. Demonstra que, travestido inicialmente de ciência positivista, em que, por meio de princípios deterministas, se tentou naturalizar relações histórico sociais, na verdade revelam um racismo explícito resultante de um modo
de produção defendido pelos intelectuais orgânicos das elites nacionais e que era estruturalmente comprometido com as desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais, porque baseado na mais cruel reificação de seres humanos. E quando esse modo de produção, o Escravismo Moderno – denominado por Jacob Gorender1 como ‘Escravismo Colonial’ – foi substituído pelo capitalismo, também com tendência estrutural para a desigualdade, mas cujo processo de acumulação dependia da libertação formal dos agentes produtivos (escravos), disfarçou-se em liberalismo, mas conservou as pautas ideológicas da dominação autocrática.
Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo, a professora Lilia Moritz Schwarcz, com seus aguçados olhos de antropóloga, vem dissecando a identidade do Brasil e a alma dos brasileiros com suas premiadas obras, como As barbas do imperador: D. Pedro II – um monarca nos trópicos (1998) e O sol do Brasil (2008), contempladas, respectivamente com o prêmio Jabuti Não Ficção e com o Jabuti Biografia. Além desses títulos, compartilhou com Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa a autoria de A longa viagem da biblioteca dos reis (2002) e, com Heloísa Murgel Starling, em 2015, co-escreveu e publicou Brasil: uma biografia. Em 2017, deu ao lume o volumoso Lima Barreto: triste visionário, a partir de uma pesquisa monumental, consumada numa escrita rigorosa e elegante que acrescenta a Lilia mais um título em sua carreira de historiadora e antropóloga: a de uma das mais importantes biógrafas brasileiras.
Neste O espetáculo das raças, resultante de sua tese de doutorado, de fendida na universidade em que trabalha, a autora reconstitui não apenas a afirmação da identidade profissional de médicos e de advogados brasileiros, mas também suas pretensões hegemônicas, ao longo das três últimas décadas do século XIX e das três primeiras do século XX, embalados pela teoria darwinista, especialmente na sua versão spenceriana, e pelas concepções racistas tão em voga na época. Ao longo de seis eruditos capítulos e de algumas considerações finais, Lilia disseca a estrutura e o funcionamento das instituições produtoras de conhecimento no Brasil da época: os museus, os institutos históricos e geográficos e as faculdades de direito e de medicina.
Analisa, primeiramente, o Museu Real, mais tarde, Museu Nacional, do Rio de Janeiro, passando para o exame do Museu Paulista, hoje Museu do Ipiranga, e chegando ao Museu Emilio Goeldi, instalado em Belém do Pará. Debruça-se, em seguida, sobre os institutos, iniciando pelo Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, passando pelo Instituto Archeologico e Geographico de Pernambuco e chegando ao Instituto Histórico e Geographico de São Paulo. Aborda, a seguir, a Faculdade de Direito de Recife e a Academia de Direito de São Paulo para, finalmente, estudar escolas de medicina da Bahia e a do Rio de Janeiros, com suas respectivas revistas científicas, Gazeta Médica da Bahia e Brazil Medico.
Ao longo da obra, vamos percebendo como juristas e médicos disputaram a hegemonia intelectual do país – sem, evidentemente, deixarem de disputar o controle dos aparelhos de Estado –, não importando o preço a ser pago pela população brasileira, mormente por seus segmentos mais deserdados pela sorte. É que a corrida pelo poder se assentava na legiti mação ‘científica’, objetivada por medidas autoritárias e violentas, todas elas assentadas no referencial teórico do racismo. Traduzido como ‘higienismo’, que buscava limpeza material e espiritual da população brasileira, expurgada e ‘purificada’ de seus componentes ‘deficientes’ e ‘degenerados’, ele alvejava reiteradamente os segmentos mais pobres e mais discrimina dos da população brasileira. Em outras palavras, os intelectuais egressos ou membros dessas instituições deram fundamentos ‘científicos’ às jus
tificativas raciais que deveriam sustentar hierarquias sociais consolidadas pela exploração econômica. A lei e o remédio eram as ferramentas de que lançavam mão os médicos e os juristas, não apenas para obter pessoalmente altos rendimentos e prestígio social, como também para empalmar o controle do projeto de nação.

Autores(as)

José Eustáquio Romão

Fernando Vinicius Gonçalves Frias